RESENHA
As razões de um falcão
É curioso que alguém como Donald Rumsfeld, que reconhece a natureza duvidosa das informações, demonstre tantas certezas ao longo de um livro de memórias. Por Renato Lima
Urbana, IL (EUA) – Na política norte-americana, o termo falcão se refere a conservadores que acreditam que os Estados Unidos devem se impor mundialmente por seus valores e, quando isso não for suficiente, por sua força bélica. Nada tão instrutivo para conhecer os argumentos desse grupo político e suas ações recentes do que ler o livro “Known and Unknown” (“O conhecido e o desconhecido”, numa tradução livre) do ex-secretário de Defesa do governo George Bush filho, Donald Rumsfeld. Apesar da sua passagem muito criticada como comandante da guerra do Iraque e do Afeganistão, o livro está na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos.
O título é fruto de um curioso monólogo que Rumsfeld engatou durante uma entrevista coletiva como secretário de Defesa do governo Bush. Rumsfeld começou a divagar sobre os perigos que se sabem, os que se sabem que não se sabem – e, portanto, pode-se tentar obter informações – e os de pior natureza, aquilo que não sabemos que não sabemos. E, para quem nada sabia sobre a vida de Rumsfeld fora a sua mais recente passagem como secretário de Defesa, é interessante descobrir no volumoso livro – cerca de 800 páginas – uma interessante carreira política e administrativa que perpassa a história dos Estados Unidos da Segunda Guerra Mundial até os dias atuais.
Raízes
Rumsfeld veio de uma família pobre de Chicago. O pai trabalhava como corretor de imóveis. A família era obrigada a se mudar constantemente, pois o pai comprava casas velhas, passava a morar lá enquanto reformava todo o imóvel e depois vendia por um preço superior. Quando os japoneses atacaram Pearl Habor, o pai de Rumsfeld se voluntariou como fuzileiro naval. Não tinha o perfil: era franzino e próximo dos 40 anos de idade. Acabou sendo recusado pelo governo. O senhor George Rumsfeld não desistiu. Voltou para casa e entrou numa dieta de engorda bebendo muitos milk shakes até que foi aceito para a Marinha. Como resultado, a família Rumsfeld passou a morar próximo de bases militares.
Após completar o ensino médio, Donald ganha uma bolsa para alunos carentes e segue para estudar em Princeton. Para completar a ajuda – que não incluía residência, refeições, livros ou transporte – Donald se alista num programa da Força Aérea em que o aluno é obrigado a servir por pelo menos três anos após se formar. Em pouco tempo ele se casou com a jovem que conheceu quando tinha 14 anos – Marion Joyce Pierson, sua esposa desde 1954 – e se tornou instrutor de voos. Quando deixa a aeronáutica, se candidata pelo seu distrito de Chicago ao cargo de deputado federal e é eleito aos 29 anos. Daí em diante teve uma meteórica carreira pública que lhe levou a ser embaixador na Otan, chefe de gabinete do governo Nixon, o mais jovem secretário de Defesa no governo Geraldo Ford e depois o mais velho secretário de Defesa no governo Bush e ainda enviado especial ao Oriente Médio no governo Reagan. O pano de fundo dessa ascensão é o próprio desenrolar da política norte-americana, como as tensas relações com a União Soviética, o escândalo do Watergate, e o mandato tampão de Geraldo Ford, que assumiu após a renúncia de Nixon. Se tivesse parado por aí seria mais bem lembrado por uma parcela do público norte-americano, mas Rumsfeld foi um dos arquitetos da guerra do Iraque e ele não perdeu a oportunidade neste livro de reafirmar os motivos que o levaram à caça de Saddam. E, se com 800 páginas não deu para explicar tudo, Rumsfeld ainda abriu um site de apoio ao livro com inúmeros documentos e vídeos (http://www.rumsfeld.com/).
É curioso que alguém que reconhece a natureza duvidosa das informações demonstre tantas certezas ao longo de um livro de memórias de uma vida polêmica. A biografia tem um ar de defesa não apenas das ações do próprio Rumsfeld, mas do seu principal parceiro no governo Bush filho: o vice-presidente Dick Cheney. Os dois faziam parte do grupo de falcões da administração Bush, os que achavam importante os EUA demonstrarem força para conter os inimigos e para isso valia até mesmo a guerra preventiva, atacar antes de ser atacado e justificar como uma medida de defesa. Ainda que armas de destruição em massa não tivessem sido encontradas, Rumsfeld diz que a capacidade de fabricação desses armamentos existia e que os Estados Unidos estão mais seguros com Saddam fora do governo.
Relação com Dick Cheney
A amizade entre Rumsfeld e Cheney é antiga. Cheney era um jovem aluno do doutorado de ciências política da Universidade de Wisconsin e que começou a trabalhar no Congresso norte-americano como estagiário. Os dois se conheceram e Rumsfeld contratou Cheney para trabalhar com ele no Escritório de Oportunidades Econômicas na administração Nixon. Com o tempo, a amizade e parceria entre os dois cresceram. Rumsfeld constantemente cita Cheney como peça fundamental em várias crises ou mesmo em passagens prosaicas, como o fato de que foi Cheney quem ensinou a filha Valery de Rumsfeld a dirigir.
Rumsfeld mostra que era considerado um falcão desde a administração Gerald Ford, quando serviu como chefe de gabinete e depois na Defesa. Nessa época, a política externa era comandada por Henry Kissinger, que ofuscava os comandantes do Pentágono. Kissinger era adepto da política de contenção com a União Soviética, a coexistência pacífica na base de encontros oficiais e assinatura de pactos. Mas, enquanto a União Soviética dizia desejar a paz, fornecia armas para guerrilhas que depois instauravam governos comunistas, como aconteceu na Angola. O exército norte-americano sabia que a sua liderança bélica estava diminuindo desde os anos 60 e a moral da tropa estava baixa, especialmente com a derrota na guerra do Vietnã, com a retirada das tropas feitas também no governo Ford. Rumsfeld assume a Defesa após o fracasso do Vietnã e pressiona por um aumento no orçamento militar. O Congresso nega, já com preocupações com o déficit norte-americano e pelo clima anti-guerra que vigorava nos EUA após a ressaca do Vietnã.
Nessas memórias, Rumsfeld acha que a guerra do Vietnã dava para ter sido ganha, mas foi mal conduzida. Também reclama constantemente do Congresso e o poder que ele tem em limitar a autoridade presidencial em questões militares (como a própria definição do orçamento). Apesar de ter sido congressista, ele deixa transparecer pouco apreço pelo sistema de freios e contrapesos (checks and balances) que é a função do Congresso, ainda mais numa questão tão decisiva quanto o envio de milhares de jovens norte-americanos para um palco de guerra. Para Rumsfeld, as pressões do Congresso enviam um sinal de fraqueza, sinalizando que os EUA não seriam capazes de garantir a segurança dos seus aliados. Um problema que a União Soviética não teria, já que o governo comunista não precisava se dobrar ao que a opinião pública nacional defendia, já que os direitos básicos de expressão eram limitados e não se admitia oposição partidária.
Rumsfeld integra um grupo com um pensamento estratégico: a demonstração de fraqueza convida o ataque dos inimigos. Para ele, era assim contra a União Soviética e continua assim com grupos terroristas. Limitar o poder de fazer guerra ou colocar condições ajudaria a telegrafar ao inimigo o que ele deve fazer para vencer o embate. Mesmo quem não se alinhou incondicionalmente a ele e Cheney durante o governo Bush, como Condoleezza Rice e Colin Powell, recebem críticas nesse livro como pessoas indecisas.
O mesmo estilo falcão foi levado para os negócios privados. Após o final da administração Ford, Rumsfeld repassa informações para o presidente eleito Jimmy Carter (chamado por ele de inexperiente e inábil) e segue para trabalhar no setor privado. Sua primeira colocação foi como presidente de uma indústria farmacêutica, a Searle. Produtos como o dramin, metamucil e a primeira pílula anticoncepcional saíram desta empresa. Mas os lucros estavam caindo, muitas patentes estavam prestes a expirar e poucos produtos estavam em desenvolvimento. Rumsfeld enxugou a empresa, vendeu operações fora do novo desenho estratégico e demitiu muita gente no meio do caminho. Também conseguiu a aprovação de um produto que foi desenvolvido pela Searle, mas esperava na burocracia do governo federal o sinal verde para a comercialização: o adoçante aspartame. As medidas trouxeram mais lucratividade para a empresa, mas Rumsfeld figurou numa publicação de negócios como um dos mais duros administradores norte-americanos. A Searle depois foi vendida para a Monsanto e hoje faz parte do grupo Pfizer.
Reação dos conservadores
A atenção pública que o livro vem recebendo ficou mesmo limitada à atuação mais recente durante o governo Bush. Curiosamente, em entrevistas na televisão, Rumsfeld foi recebido de forma mais dura por apresentadores conservadores do que pela mídia tradicional. Na Fox News, o jornalista Bill O’Reilly gritou exasperado contra ele (http://www.youtube.com/watch?v=72gMRv9w3no) e Andrew Napolitano perguntou se foi Rumsfeld quem vendeu armas de destruição em massa para Saddam nos anos 80. Além de uma dura entrevista (http://www.youtube.com/watch?v=fnytBubhCKQ), Napolitano ainda gravou um segmento (http://www.youtube.com/watch?v=gpYe0MgEsI0&feature=player_embedded) em que diz que o ex-secretário autorizou torturas e é um dos responsáveis pelo maior ataque à Constituição norte-americana.
Não que ele tenha encontrado novos amigos no restante da mídia que o criticava, mas parece haver uma tendência a colocar a culpa dos principais erros da administração Bush nos falcões Donald Rumsfeld e Dick Cheney. Daí que conservadores tenham mais razões para se posicionar contra Rumsfeld e a sua versão dos acontecimentos durante o governo do que a apresentada por George Bush, que foi bem mais humilde no seu livro de memórias também lançado há pouco tempo, “Decision Points”.
Mas a possível falta de humildade ou de reconhecimento de erros tem seu lado positivo com o livro. É preciso a coragem de um falcão para, nessa etapa da vida, não recuar, não condescender e ser explícito sobre o seu pensamento e como via as ações dos outros, inclusive colegas de governo. Pode não lhe criar amigos, mas é um documento histórico muito mais interessante do que se fosse uma versão construída para tentar sair bem na foto, além de ser um texto bem escrito.
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